Jana Lauxen

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Um neto para Alcântara Machado

Queria netos.
Precisava de netos.
Dos três filhos, sabia bem: nenhum tinha condições de levar adiante suas terras, seus negócios, seus patrimônios. Muito menos seu sobrenome, tão respeitoso.
Eram uns miseráveis, seus rebentos. Uma vergonha. Tomavam café com açúcar, e o velho Alcântara Machado pensava que um homem de verdade toma café sem adocicá-lo.
Se não agüenta um bom café forte e puro, o que irá agüentar nessa vida?
Era o que ele pensava.
A vida não era doce.
Trabalhou até os 78 anos, acumulando a fortuna que, sonhava, um dia deixaria para seu neto.
Um Alcântara Machado legítimo, guerreiro e bravo, tomador de café amargo.

Em uma tarde fria caiu adoentado.
Deitado na cama, afundado em meio a travesseiros e lençóis, o patriarca, viúvo há quase 25 anos, mandou chamar os três filhos:
- Sentem-se aí – disse, levemente aborrecido. Além da problemática do café com açúcar, também os considerava uns açucarados enquanto machos. Chegava quase a desprezá-los.
- Sentem-se aí!
Os três obedeceram, como sempre fizeram.
O moribundo tirou da gaveta do bidê um envelope amarelado.
- Sabem o que é isto? – fez mistério, sacudindo a carta com a mão fraca.
Todos manearem a cabeça negativamente.
- Isto é o meu testamento.
Sem disfarçar a surpresa, os três remexeram-se em suas cadeiras.
Já era hora.
Foi o que todos pensaram.
- Ficaram alegrinhos, não é? – caçoou o velho, que não perdia o irritante deboche, nem quando estava morrendo.
Abriu o envelope e tirou lá de dentro uma folha de ofício, com carimbos de cartório e tudo o mais.
Pigarreou, fez alguma cerimônia e leu:
- Pleno de minhas faculdades mentais, eu, Robervaldo Alcântara Machado, deixo minhas fazendas, imóveis, contas bancárias, cabeças de bois e tudo que estiver em meu nome...
Os três salivavam, o coração descompassado na garganta.
- ... para meu neto.
Todos se levantaram, falando ao mesmo tempo:
- Como assim?
- Que absurdo!
- Você não tem neto nenhum!

Não. O velho Alcântara não tinha neto nenhum.

O adoentado deixou que os filhos reclamassem à vontade.
Quando se aquietaram, percebendo o silêncio do patriarca e detentor de toda a fortuna da família, ele continuou:
- Não tenho netos porque vocês são uns fracassos como Alcântaras Machados. Desde pequenininhos, uns frescos. O leite precisa ser morno, a carne bem passada, os lençóis bem esticados e o café... ah, o maldito café com açúcar! Não vou deixar nada para bobocas adoçados como vocês.
- E vai deixar para quem, seu velhote cretino? Para um neto imaginário? – falou o mais velho, alterado.
- Eu ainda não morri, bonitão. E nem vocês, até onde eu sei. Tratem de me arrumar um neto, ou...
Ou...?
- ...Ou deixarei tudo para a igreja.

Os três, que se chamavam Rafael, Fernando e Osvaldo – por ordem de nascimento - saíram do quarto do pai desolados.
Sentaram-se na varanda e serviram-se de café:
- Me passa o açúcar?
Foi Rafael, o mais velho e mais metido, quem acendeu um cigarro e falou:
- Este desgraçado... Até morrendo enche o saco. Onde já se viu? Aonde ele quer nos meter?
- Precisamos falar com um advogado, ver até que ponto isto é permitido pela lei – tentou o do meio, Fernando, bebericando o café e comendo um biscoitinho.
- Que advogado o que! – esbravejou o primeiro, interrompendo o irmão – Até parece que não conhece nosso pai. Quando ele decide, não há uma opção B.
- Mas se isso for realmente possível – disse baixinho Osvaldo, o mais novo e mais tímido – então teremos de dar um neto para nosso pai.
- E como vamos fazer isso? – quis saber Fernando, enquanto mastigava.
Os dois o encararam entediados.
Às vezes pensavam que seu pai tinha razão: açúcar demais, melava.

Não falaram mais sobre isso.
Voltaram para suas vidas e agiram como se nada tivesse acontecido.
Mas de noite, sozinhos em seus quartos, cada um matutava um jeito de arranjar um filho o mais depressa possível.
Rafael gostava de mulheres, muitas mulheres, mas era burro demais para conquistá-las. Até se utilizava de seu sobrenome pomposo para pegar uma aqui, outra acolá, mas a verdade é que ninguém agüentava suas conversas e sua gritante alienação. E desde que o velho encasquetara com aquela história de açúcar no café, só sabia lhe incomodar, era um inferno. Até parou de tomar café.
Mas tomava chá. Com açúcar.
Osvaldo queria estudar. Fazer uma faculdade, qualquer uma. Queria sair da casa do pai, conhecer outros lugares, outras pessoas. Porém não adiantava. O velho não queria saber de lhe custear nada. Só sabia lhe incomodar. E aquela insana obsessão pelo café, era horrível. Osvaldo não colocava açúcar no café, mas tomava descafeinado, escondido de todo mundo. Até dos irmãos.
Fernando queria parar de ouvir falar em café. Nem se importava muito com o dinheiro, desde que pudesse tomar sua bebida adoçada a hora que bem entendesse. Evidentemente que dinheiro no bolso não fazia mal para ninguém, e ter um filho até não seria ruim. Parecia mais fácil do que aturar aquele rabugento de seu pai.

Todas as noites, os três saiam à surdina.
Antes do filho, afinal, precisavam encontrar uma mãe.
E esta foi a parte mais difícil.
Até porque, do mesmo jeito que um filho é para toda vida, uma ex-mulher e mãe-de-seu-filho também é. Nenhum deles estava interessado em casar, queriam apenas uma grávida para chamar de sua e finalmente botar a mão na grana do velho pai.
Nada mais.

Osvaldo e Fernando foram mais cautelosos.
Rafael, mais afobado, só queria uma fêmea fértil.
Seis meses depois, todos os três tinham namoradas grávidas.
- E estes filhos? São de vocês mesmo? – perguntava satírico o velho Alcântara, deitado em sua cama, exatamente do mesmo jeito que estava quando leu seu testamento inusitado.
- Se você não morrer antes, poderá confirmar em um teste de DNA. – respondeu com frieza Rafael, que já estava enjoado da garota que acabou sorteada para lhe dar um herdeiro. Era uma biscate e só sabia lhe aborrecer.
- Acredite: eu viverei para ver isso.
Foi o que Alcântara Machado respondeu.

Com diferenças de poucos meses, logo havia mais três membros na família. Três bebês adoráveis e famintos, que mal abriram os olhos e já se tornaram donos de uma fortuna em terras, negócios, patrimônio e sobrenome.
Três dias depois do nascimento do terceiro neto, Alcântara Machado morreu.
Com uma expressão desconfiada no rosto.

- E não é que o velho agüentou viver para ver os bebês nascerem?
- Eu falei: quando ele decide, não há uma opção B.
- Pelo menos continuamos ricos. É só o que importa.
No velório nenhum dos filhos chorou, e ninguém disse nada para eles, mas corriam rumores de que o velho, depois de olhar para as fuças de cada um de seus pequeninos herdeiros, havia dito:
- Enjoativos que nem açúcar. Devem ser piores que os pais.
Nunca se soube se tal história era fato ou ficção.

Possivelmente por uma pitoresca dependência emocional pós-túmulo, os três continuaram a morar no antigo casarão de seu pai.
Com suas esposas e seus bebês.
Rafael foi o primeiro a se separar. Dina era uma safada, pilantra, adúltera e sem vergonha, segundo ele próprio. A enxotou de casa, gritando palavrões. Mas depois precisou assinar alguns papéis, e metade do que tinha, ela levou. Isso sem falar na pensão da criança, a verdadeira dona de tudo.
Fernando foi o segundo a nascer e o segundo a se separar. Sua esposa era completamente louca, e quando tinha seus ataques de ciúme era capaz de destruir uma casa inteira em menos de cinco minutos. Um dia, em um momento de histeria, Fernando lhe deu um tapa, para fazê-la voltar a si. No entanto bateu forte demais, e deixou em seu rosto um horrendo hematoma. Ela foi aos tribunais e levou metade do que ele tinha. Isso sem falar na pensão da criança, a verdadeira dona de tudo.
Por último, Osvaldo, que caiu nas graças da nova cozinheira e foi flagrado pela senhora sua esposa pelado, no quarto da empregada. Suzana levou a metade do que ele tinha. Isso sem falar na pensão da criança, a verdadeira dona de tudo.

Não demorou e os três filhos tinham mais gastos do que lucros.
Apesar da enorme fortuna da família, tudo que só vai e nunca vem acaba terminando.
Nenhum deles tinha condições de levar adiante os negócios da família, as terras, os patrimônios, o sobrenome.
- Quer merda, heim? – resmungou Rafael, mais gordo e mais barbudo, enquanto acendia um cigarro.
- Este velho... Até depois de morto enche o saco. Onde já se viu? Olha onde nos meteu...
- Pior não é isso – falou baixinho Osvaldo, que continuava tímido – Pior mesmo é que o meu filho só toma leite amornado, só come carne bem passada e só dorme se o lençol estiver bem esticado.
- O meu também – concordou desanimado Rafael.
Fernando comia biscoitinhos enquanto se servia de café:
- Me passa o açúcar?

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